Um dos pioneiros na defesa ambiental, Bigarella promoveu batalhas para defender sua convicção: “o homem é parte da natureza e deve respeitá-la”. Cientista condecorado, recebeu o título de Comendador da Ordem Nacional do Mérito Científico, em 1995, e a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico, cinco anos depois.
Na década de 1960 iniciou o estudo que lhe deu projeção internacional: a comprovação da teoria da divisa dos continentes. Com mais de duzentos artigos científicos publicados, percorreu o mundo realizando palestras. Nessa entrevista o cientista faz uma projeção alarmante: “não vamos suportar o aquecimento global e pela ausência do homem o planeta vai entrar novamente em equilíbrio”.Quando surgiu seu interesse pela ciência?Meu interesse pela ciência nasceu na infância.
Nos fins de semana meu pai gostava de visitar os locais próximos a Curitiba e comecei a gostar da natureza. Na escola, os professores, a partir do terceiro ano do primário, incentivavam as ciências. Eu fui aluno marista e no domingo era obrigado a assistir a Missa, depois uma turma jogava futebol e um grupo de alunos pedia aos professores para ir ao laboratório. Aprendi muito nessas visitas.
O senhor é formado em Engenharia Química. No entanto, seguiu carreira como geólogo. Como foi sua migração para a geologia?Em 1939 fiz pré-engenharia, na turma noturna do Colégio Estadual do Paraná. Entrei na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Paraná, optei por Química e me formei em 1943. Em 1945 me formei em Química Industrial. Na época, estagiava no Instituto de Biologia e Pesquisas Tecnológicas, o IBPT.
Em 45 fui contratado. Era um local de muita pesquisa, foi uma escola. Nesse período o escritório do Lupion tentava implantar a indústria do cimento no Paraná. Eu ia a campo coletar amostras de rocha calcária e percebi que determinadas direções da rocha possuem a mesma composição. Então comecei a estudar e interpretar ambientes. Basicamente, foi nos trabalhos de pesquisa do IBPT que me envolvi na geologia.
Na década de 1960, o senhor desenvolveu um trabalho que validou a teoria de Wegger. Como foi desenvolver essa pesquisa que comprovou a divisa dos continentes?
Consegui uma bolsa de pesquisa da Joah Simos Guggehei Memorial Fundation. Fui aos Estados Unidos e visitei várias universidades e institutos de pesquisa. Nesse período pude acompanhar muitos trabalhos de campo e vi como eles lecionavam na pós-graduação e graduação. Em determinado momento, quando estive no planalto do Colorado, tive a oportunidade de aprender a prospectar urânio com o exército americano. Eles determinavam pela rocha que aflorava a direção do fluxo fluvial. Sabendo para onde ele ia, conseguiam prospectar urânio. Essa tecnologia determinou minha vida profissional. Isso me ajudou a descobrir um modo de pesquisar paleocorrentes. Quando voltei ao Brasil tive a idéia de medir o Arenito Botucatu. Naquele tempo eu pretendia entender como era a circulação atmosférica, para comparar como ela é hoje.Antes de ir aos Estados Unidos, trabalhei com o professor Reinhard Maack, no IBPT. Ele falava da separação dos continentes, porque teve contato com Alfred Wegger, num determinado momento. E o professor Wegger sabia que o Maack estava trabalhando na África e também conhecia o Brasil. Wegger pediu ao Maack para comparar e verificar se existiam semelhanças entre a geologia dos dois continentes. A geologia era semelhante, mas daí ficava a questão: se clima e condições ambientais fossem iguais, as rochas seriam muito similares.Foi aí que introduzi uma ferramenta que ninguém tinha usado até o momento.
Estudar paleocorrentes, isto é, a circulação das correntes marinhas e das correntes eólicas, a direção dos depósitos fluviais, o movimento das geleiras e as direções desse movimento. Depois de fazer milhares de medições, tanto na América do Sul, como na África, acabamos descobrindo que existia uma área de transcendência dos sedimentos. Quando comparei a média das medições feitas no arenito marinho, na região da Argentina e na Província do Cabo, a diferença da resultante era praticamente nula. A geologia considera que se houver uma abertura de 20 graus já é fantástica. Então veja a perfeição desse método, que fui tirar de uma prospecção de urânio. Este foi um trabalho que levou 15 anos.
Durante 25 anos o senhor participou de uma luta judicial contra o governo do Paraná para preservar os arenitos de Vila Velha. Foi uma boa batalha?
Foi. Essa batalha não foi só feita por mim. Teve um grupo de professores ambientalistas que se sentiu chocado com o que o governo estava fazendo em Vila Velha, querendo democratizar os arenitos, fazendo restaurantes no meio das pedras. Levamos o problema ao Dr. René Dotti, que se entusiasmou pela causa e moveu uma ação que, para nós professores, não custou nada. Ele assumiu todo o custo dessa ação, porque também era um ideal dele.O senhor participou do início da catalogação, na década de 1940, dos sambaquis do litoral paranaense.
Como foi seu primeiro contato com essas jazidas arqueológicas?Eu conhecia os sambaquis do tempo em que ia ao litoral. Na época, extraiam a casca para pavimentar as ruas da cidade ou colocar em jardins. Naquele tempo, minha esposa Irís formou-se em Geografia e História e o interesse dela era por Antropologia. Existia também uma pessoa, que fomos conhecer depois, Guilherme Tibúrcius, que colecionava material indígena. Ele trabalhou em Santa Catarina, onde começou a coletar essas peças. Depois veio a Curitiba e ia atrás dos caminhões do DNER, para colecionar o material que era jogado nas estradas. Só que ele não tinha formação acadêmica de Geologia. Então começamos a orientá-lo para que, no momento da coleta do material, fizesse um desenho do sambaqui e localizasse de onde saia a amostra.Depois de um tempo, o professor Correia de Azevedo foi convidado para assumir o Departamento de Cultura e me convidou para assumir o Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural do Paraná. Entrei nessa divisão e sugeri que fizéssemos o cadastramento, mapeamento e avaliação do sambaqui do litoral, que estava sendo destruído. O pessoal do IBPT ficou entusiasmado com essa catalogação. O professor Leprevost, por exemplo, começou a fazer análises químicas do sambaqui e a estimular o Tibúrcius a produzir trabalhos. Com essa movimentação formamos um grupo que se manteve depois que saí do Patrimônio. O IBPT assumiu o trabalho e na seqüência também fez o cadastramento dos sambaquis no Norte de Santa Catarina.Desde a década de 1970 o senhor alerta para o desmatamento da Serra do Mar. Hoje temos invasões no local, inclusive com moradias instaladas em áreas de risco. Infelizmente a sociedade não aprendeu essa lição.Fiz uma palestra nesse período, em que apresentei toda a problemática da erosão, do empobrecimento do solo, dos problemas de deslizamento e das conseqüências disso para o Porto de Paranaguá, que sem a floresta sofreria um processo de assoreamento. Quando o Dr. Alcir Miranda, que era o administrador do Porto, quis abrir o Canal da Galheta, me convidou para dar minha opinião. Sugeri que fizesse o mapeamento dos sedimentos e que verificasse qual era a energia que a Baía de Paranaguá tinha para manter os canais abertos. Fiz o mapeamento e constatei que a baía não tinha energia para colocar no mar o que chegava pela erosão. Então começamos uma campanha para impedir o desmatamento da Serra do Mar, que os madereiros queriam usar, porque a madeira já tinha acabado no interior do Paraná. Com isto, praticamente foi detido o desmatamento. Veja, a luta pelo Parque do Marumbi foi demorada, aliás, acabou saindo diferente de como foi planejada. E depois de tanta batalha, hoje o parque está sendo invadido, tem gente construindo casa lá dentro e desmatando áreas de preservação. A situação está complicada.Há 100 anos o Paraná era um borrão verde no mapa do País. Hoje o que se mantém de pé é quase 7% da mata nativa. É possível mensurar o impacto desse desmatamento e reverter a situação?O principal impacto é no recurso hídrico. A legislação antiga pedia 20% do terreno coberto por mata, mas essa mata não é em qualquer lugar, ela deveria ser em vertentes mais íngremes e nos divisores de água, para que o lençol freático ficasse mais elevado. Acredito que tem como ajustar a situação. Só que esbarramos na política e no interesse dos proprietários, que não compreendem o problema.Por que não avançamos nas questões ambientais, mesmo com tanta informação?Existe uma banalização muito grande da questão ambiental. No meu entender, o elemento mais importante nesse processo é a criança. Quando nós fizemos o Museu de Ciências Naturais, na reserva biológica do Cambuí, mostramos para as crianças os animais e a importância da fauna. Com o tempo, as crianças das imediações começaram a trazer passarinhos feridos, um dia até trouxeram filhotes de gambá, que a mãe tinha sido atropelada. Fizemos um trabalho de conscientização ecológica.
Um dado interessante, um ano antes de iniciarmos esse trabalho, as crianças andavam de estilingue. Você andava e os passarinhos fugiam. Hoje você caminha na rua e tem que pedir licença para o sabiá e para o joão-de-barro para poder passar (risos).O desenvolvimento sustentável é uma utopia ambientalmente correta?Acredito que não. O que tem que ser feito é um planejamento responsável da ocupação do território. Nesse planejamento você considera várias aproximações temáticas, como a geologia, a topografia, os solos, a cobertura vegetal e uma série de outros adicionais que mostram a capacidade dessa região. O que ela pode produzir e até quando pode produzir. Isso um grupo de técnicos pode avaliar. Se quisermos sobreviver, temos que fazer isso o quanto antes.
O efeito estufa está mudando o mundo. O panorama climático é alarmante?
A situação hoje não é nada boa. O efeito estufa não é só do homem. É um efeito natural. Depois da última glaciação, de 11 mil anos para cá, o efeito estufa estava em uma curva descendente, tentando resfriar novamente a Terra. No início da vida no planeta, a atmosfera terrestre era composta por gás carbônico e vapor d’água. Daí surgiram umas algas, chamadas azuis, que absorviam o gás carbônico para a formação das estruturas e liberavam oxigênio. Então naquele momento o oxigênio era poluente para as algas. Com o desenvolvimento da vida marinha, no pré-cambriano, a quantidade de oxigênio na atmosfera aumentou e o gás carbônico diminuiu. Na explosão da vida, no cambriano, vários seres marinhos retiravam o carbono da atmosfera e fixavam na forma de rocha calcária e as plantas liberavam oxigênio na atmosfera. Havia uma explosão de vida, que aumentou a biodiversidade. Depois a Terra começou a ter um aquecimento exagerado e veio um período muito árido. Hoje lançamos na atmosfera uma quantidade incrível de gás carbônico. O mar está poluído, o efeito tampão do mar, de tirar o gás carbônico e prender na forma de calcário foi drasticamente reduzido. Então a tendência é aumentar o efeito estufa. Com a queima do petróleo chegamos em um gráfico ascendente, quase na vertical. Estamos criando para o planeta, através de nossa ação, uma situação de aquecimento que não vamos suportar. E depois, naturalmente, pela ausência do homem o planeta vai entrar novamente em equilíbrio. Aí está o papel negativo do homem, que as grande potências não querem entender, por causa do dinheiro.O senhor é um grande conhecedor do nordeste brasileiro. A transposição do Rio São Francisco é pauta de discussão comum a todos os governos. Mas quem vai se beneficiar se a obra for realizada: o povo nordestino ou a elite local?Não tenho dúvida, quem vai lucrar é o antigo coronel. Isso porque os açudes estão nas mãos dos grandes proprietários. Realizar essa obra é utilizar dinheiro público para beneficiar poucas pessoas. Eu fui visitar as áreas de irrigação, que não estão nas mãos dos nordestinos, mas estão nas mãos de grandes proprietários do Sul. O nordestino é um bóia-fria, que recebe quase nada. Os geólogos que entendem desse problema são contra.Foi colocada em discussão certa vez a criação de áreas de preservação de araucárias no Paraná.
Essa formação de grupos pode reduzir nossos estoques genéticos?
No Paraná há um estoque genético de araucária que precisamos manter. Se a população desse estoque diminuir, teremos o problema genético de degeneração. Um fato que me preocupa também é que as araucárias correm risco de se extinguir em uma próxima crise climática. O que sempre foi pedido e nunca foi feito seria o proprietário de áreas com araucária receber uma retribuição, para não usar as araucárias na produção de madeira. Assim o governo o indeniza para que ele mantenha a floresta. E todos ganham. Isso ficaria muito mais barato do que uma desapropriação e o proprietário continua usufruindo dos recursos.
Como o senhor analisa a universidade brasileira?
Eu sei que vários professores e vários reitores têm interesse em elevar o padrão educacional. Mas há uma pressão muito grande para banalizar o ensino superior. O principal problema da educação está no ensino fundamental e no ensino médio. É preciso dar condições de profissionalização para esses estudantes. Houve uma época em que começou o ensino técnico. O CEFET formava gente, que depois foram para as universidades completar os estudos. Hoje isso desapareceu.
Como seria a universidade ideal?
Com o coração de brilhante e braços para a transmissão do conhecimento. Ou seja, um grupo dedicado à pesquisa, que elabora o conhecimento e transmite uma vivência acadêmica, e outro grupo aplicando esse conhecimento na prática.
O que é preciso fazer para que a ciência no Brasil avance?
Desenvolvendo a pesquisa acadêmica pura, sem imediatismos.
Qual é o papel social do pesquisador acadêmico?
É importante, mas indireto. O pesquisador não deve se preocupar com a aplicação prática do trabalho que desenvolve. Por exemplo, no trabalho que fiz sobre as dunas, não me preocupei com aplicação prática. Essa pesquisa acabou sendo utilizada pela indústria do petróleo. Nunca imaginei que esse trabalho seria usado por essa indústria, mas o estudo da estrutura interna das dunas facilitava a identificação do ambiente eólico, no qual se encontravam os reservatórios de petróleo. Mas durante a pesquisa, a aplicação não deve ser a preocupação.
O senhor acredita que as publicações internacionais discriminam cientistas brasileiros?
Não. O que as publicações internacionais exigem é qualidade no trabalho que é publicado. Quando eu enviava meus trabalhos para revistas americanas, recebia um relatório de um consultor, pago pela publicação, com algumas observações, sempre com críticas construtivas. Claro, na hora não gostava, mas depois agradecia por ele ter me ajudado. Mas não acredito no preconceito, se o trabalho for de qualidade não vai ser barrado porque é de um brasileiro.
Aos 83 anos de idade, quais são suas paixões?
Meu trabalho. Infelizmente, depois que passei dos 70 anos não consigo mais bolsa para fazer palestras na Europa. Gostaria de continuar viajando, de conhecer um pouco mais da China, da Sibéria e Nova Zelândia. Mas só tenho interesse em ir se for uma viagem associada a uma universidade.
Qual seu sonho para o Brasil?
Que acorde e use a ciência e tecnologia para o conhecimento e que perceba que a consciência ambiental é fundamental. O homem é uma parte da natureza, que é nossa mãe, não somos nós que devemos dar ordens à natureza, mas devemos cumpri-las e respeitá-la.
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