Primeira universidade federal do Sul a reservar vagas para pessoas negras, a UFPR transformou o perfil do ensino superior no Paraná e abriu caminho para uma nova geração de estudantes por meio de suas políticas de ações afirmativas
Em 2005, quando a Universidade Federal do Paraná (UFPR) lançou seu primeiro vestibular com cotas raciais, a iniciativa ainda era recebida com desconfiança por parte da sociedade. A reserva de 20% das vagas para candidatos negros e outros 20% para egressos de escolas públicas foi resultado de anos de discussão entre movimentos sociais, pesquisadores e gestores da universidade.
O chamado Plano de Metas para a Inclusão Racial e Social, aprovado pelos Conselhos Superiores em 2004, foi um marco: a UFPR se tornava a primeira universidade federal do Sul do país a implantar um sistema próprio de ações afirmativas.
A decisão não veio isolada. A medida se inseria em um movimento nacional que ganhava força após a redemocratização e a organização dos movimentos negros. O Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB) da UFPR teve papel central nas discussões, ao lado de pesquisadores como Paulo Vinícius Baptista da Silva, Liliana de Mendonça Porto e Maria Tarcisa Silva Bega. O objetivo era claro: tornar o acesso à universidade pública mais representativo da sociedade brasileira.
Alguns anos depois, em 2012, o debate nacional resultou na aprovação da Lei Federal nº 12.711, que determinou a reserva de 50% das vagas nas instituições federais de ensino superior para estudantes de escolas públicas, com recortes de renda e de raça. A UFPR aderiu ao novo modelo entre 2013 e 2015, substituindo gradualmente seu sistema próprio até a plena aplicação da lei a partir de 2016.
A tese de doutorado em Sociologia de Viviane Vidal Pereira dos Santos, atualmente docente do Setor de Educação da UFPR, analisou esse processo de forma detalhada, com dados de 2004 a 2019.
Como as cotas mudaram a UFPR
O estudo mostra que os limites para ocupação das vagas de cotas raciais vão além de fatores internos, envolvendo questões sociais anteriores à universidade, como desigualdade na conclusão da educação básica; falta de identificação com o grupo racial negro, especialmente no caso dos candidatos pardos; e até o receio de determinados candidatos às bancas de validação.
“Ter pais com pouca escolaridade, estudar em escolas públicas, possuir baixa renda familiar e morar na periferia são barreiras que impactam o desempenho educacional desde a educação básica. As cotas são necessárias para corrigir essas desigualdades, romper esse ciclo de desvantagens e oportunizar o acesso a quem também contribui para a manutenção das universidades públicas, mas não se via representado até então”, explica Viviane.
Antes da adoção das cotas, o acesso às universidades públicas reproduzia desigualdades sociais já consolidadas. As vagas eram majoritariamente ocupadas por candidatos que podiam se dedicar integralmente aos estudos e provinham de famílias com maior escolaridade, o que mantinha o ensino superior restrito a determinados grupos, geração após geração.
A pesquisadora destaca que o efeito mais duradouro das cotas foi a redução da desigualdade de origem: o peso da escolaridade dos pais e da renda familiar no acesso à universidade diminuiu ao longo dos anos. O ensino superior, antes restrito a grupos específicos, tornou-se mais plural e acessível. As políticas afirmativas implementadas na UFPR modificaram o perfil dos candidatos aprovados no vestibular.
Esse efeito tornou-se ainda mais evidente a partir de 2016, quando as cotas passaram a valer já na primeira fase do vestibular. A pesquisadora observa que, desde então, houve aumento expressivo de cotistas cujos pais ou responsáveis tinham escolaridade inferior ao ensino médio completo; jovens que, em muitos casos, seriam a primeira geração da família a acessar o ensino superior.
Com a ampliação da presença de estudantes negros, pretos e pardos, a participação, que antes da política de cotas não chegava a 10%, ultrapassou 22% em 2019. O percentual refere-se à cor/raça autodeclarada no momento da inscrição no vestibular, independentemente da modalidade de ingresso.
Quanto ao ingresso por cotas — considerando estudantes de escolas públicas, com recortes de renda e raça —, até 2015, 32% dos aprovados haviam ingressado pela política. Entre 2016 e 2019, esse percentual médio chegou a 47,4%.
“Para além das estatísticas, é possível observar a diversidade no dia a dia dos campi, o que é fundamental para a construção e a circulação do conhecimento produzido pela universidade. A UFPR se tornou mais representativa em relação à sociedade paranaense”, analisa Viviane.
Preconceito e desafios

A analista judiciária do Tribunal de Justiça do Paraná Camila Martins Novato ingressou na UFPR em 2005, na primeira turma contemplada pelo Plano de Metas para a Inclusão Racial e Social. Ela relata ter enfrentado episódios de racismo na infância e na adolescência e viu no ensino superior a chance de deixar sua cidade natal. Para ela, as cotas permitiram concretizar o sonho de acessar a universidade pública.
Ao longo da graduação, continuou enfrentando manifestações de preconceito velado e chegou a responder a um processo judicial movido por uma pessoa que alegava ter obtido nota superior e, por isso, deveria ocupar a vaga destinada a cotistas.
A terapeuta ocupacional Alcione Batista Leite, que também ingressou na UFPR em 2005 por meio das ações afirmativas, relata que se sentia intelectualmente subestimada por parte da comunidade acadêmica. “Havia uma grande expectativa sobre o desempenho dos alunos cotistas, além de uma ‘preocupação’ com evasão e com uma possível queda na qualidade dos cursos da universidade”, relembra.

Ela destaca, porém, que o preconceito convivia com fortes redes de apoio, especialmente entre docentes, técnicos e ativistas que atuaram pela implementação da política. “A sensação que tenho é que nós éramos os ‘frutos colhidos’ da luta desses sujeitos pela implantação do sistema de cotas na UFPR. O apoio deles foi fundamental para a minha permanência na universidade”, afirma.
Apesar das dificuldades de aceitação social em relação à nova forma de ingresso, ambas avaliam que o maior obstáculo durante a graduação foi de ordem financeira.
“O principal desafio foi me manter na universidade. Vim para Curitiba sem emprego. No primeiro ano, recebia bolsa do Brasil Afroatitude, programa do governo que me ajudou muito. Depois, consegui um estágio remunerado que permitia pagar minhas contas”, recorda Camila.
Alcione também recebeu bolsa por um ano pelo mesmo programa. Após o término do fomento, tornou-se bolsista da Fundação Araucária, que apoiava atividades de pesquisa e extensão. Foi assim que garantiu sua permanência até o final da graduação.
Desempenho e permanência: olhar sobre os resultados
Se a pesquisa de Viviane mostra o impacto das cotas na entrada, o estudo do professor Emerson Urizzi Cervi, do Departamento de Ciência Política da UFPR, acompanha o que acontece depois da aprovação. A pesquisa analisou o desempenho de 4.699 alunos ingressantes no vestibular de 2014, acompanhando suas trajetórias até 2019.
Os resultados apontam que cotistas e não cotistas têm trajetórias acadêmicas semelhantes. As taxas de conclusão, rendimento e aprovação em disciplinas não diferem significativamente entre os grupos.
Entre os formados, o desempenho é equivalente, independentemente da modalidade de ingresso ou da cor da pele. As diferenças registradas no vestibular desaparecem ao longo da trajetória acadêmica, indicando que, uma vez dentro da universidade, as oportunidades de aprendizado se igualam.
Cervi explica que as cotas sociais segmentam os vestibulandos conforme seu preparo prévio. “Os que puderam se dedicar mais aos estudos concorrem com seus pares; já aqueles que precisaram conciliar o ensino médio com trabalho, interrupções ou a busca por meios de sobrevivência disputam entre si. Ao final, as cotas garantem que os melhores de cada grupo social sejam aprovados. Quando todos competiam com todos, os menos favorecidos sempre entravam em desvantagem, fator que, na maioria das vezes, determinava o insucesso”.
O estudo também identifica que o maior desafio dos cotistas é a permanência na universidade. “O fator que mais afeta a conclusão do curso não é a cor da pele, mas a condição socioeconômica, especialmente a necessidade de trabalhar e a baixa escolaridade dos pais”, observa o pesquisador.
Por essa razão, Cervi defende que as políticas públicas devem, agora, priorizar a permanência estudantil. “As cotas abriram portas e iniciaram a correção de uma desigualdade histórica, mas é necessário que venham acompanhadas de políticas consistentes, fundamentadas em dados técnicos, para garantir a permanência dos cotistas”.
A assistência estudantil nas universidades públicas é assegurada principalmente pelo Programa Nacional de Assistência Estudantil (Pnaes), que oferece suporte em áreas como moradia, alimentação e transporte.
Na UFPR, a gestão desses recursos federais é responsabilidade da Pró-Reitoria de Pertencimento e Políticas de Permanência Estudantil (P4E). Segundo o pró-reitor adjunto, Sergio D’Almeida Sanchez, os dados atuais mostram que estudantes pretos e pardos recebem proporcionalmente mais bolsas do que o conjunto geral dos alunos da instituição.
“Para conceder as bolsas, realizamos, inicialmente, uma análise de renda. E, dentro desse grupo, fazemos uma avaliação social em que estudantes pretos e pardos recebem uma pontuação maior. Outros fatores também entram na análise, mas, de fato, temos uma ação afirmativa dentro da distribuição dos auxílios. Assim, esses alunos têm maior chance de recebê-los”, explica Sanchez.
Ele reforça que “as cotas garantem o acesso; o Pnaes garante a permanência. Sem o segundo, o primeiro se torna letra morta”. No entanto, o fortalecimento do programa esbarra na limitação de recursos.
“Embora o Pnaes tenha avançado institucionalmente, seus recursos não acompanharam a inflação, o custo de vida e o aumento do número de estudantes vulneráveis. A UFPR tem um compromisso histórico com a inclusão e com a permanência estudantil. Porém, para honrar esse compromisso, é indispensável que o financiamento federal reponha integralmente a inflação acumulada desde 2016, acompanhe o aumento da demanda social, reconheça o custo de vida real dos nossos estudantes e garanta estabilidade multianual para planejamento institucional”, pontua Sanchez.
Para que políticas públicas gerem resultados efetivos, elas precisam considerar fatores multidimensionais, direta ou indiretamente relacionados à área de atuação. No caso das políticas afirmativas para inclusão de estudantes de baixa renda, pretos, pardos e indígenas no ensino superior, pesquisadores avaliam que seus efeitos mais profundos serão perceptíveis apenas na próxima geração.
“Muitas vezes, os cotistas concluintes são os primeiros da família a obter um diploma de ensino superior, o que já representa uma mudança significativa. Mas, para sabermos se essas transformações são de fato estruturais, será preciso esperar pelo menos uma geração, até que os filhos desses cotistas cheguem à universidade sem se enquadrar nos critérios socioeconômicos das cotas. Só então perceberemos os resultados efetivos da política”, avalia Cervi.
Uma universidade mais diversa
Os 20 anos das cotas raciais marcam não apenas uma política pública de acesso, mas uma mudança cultural na universidade. Hoje, coletivos negros, projetos de extensão e programas de apoio estudantil ocupam espaços que antes não existiam. A presença de cotistas também impulsionou debates sobre diversidade na pós-graduação e entre servidores.
O professor de Ciência Política destaca que os grupos socialmente mais favorecidos não foram prejudicados pela adoção das ações afirmativas, já que, considerando todas as modalidades de ingresso, o número de vagas praticamente dobrou desde 2005. “As cotas beneficiaram todos os grupos sociais, não apenas os mais vulneráveis”.
Camila afirma que sua formação e sua trajetória profissional só foram possíveis graças às políticas afirmativas. “A universidade me tornou uma mulher orgulhosa da minha raça e de quem eu sou; foi essencial para minha autoestima e para a formação do meu pensamento crítico. Tudo o que sou e tenho hoje devo às cotas”, declara.
Para Alcione, o sistema de cotas foi um “divisor de águas”, indo muito além do acesso ao ensino superior. “A formação obtida nos projetos de extensão me levou a refletir sobre questões que nunca havia considerado e trouxe transformações que carregarei por toda a vida”.
Essas reflexões também se estendem à sociedade, que hoje reconhece os resultados positivos das ações afirmativas.
“De lá para cá, muita coisa mudou. Os argumentos contrários ao sistema de cotas tornaram-se insustentáveis. As pessoas que ingressaram por cotas já atuam em suas profissões com excelência, e algumas retornam como servidoras — é o meu caso, sou técnica administrativa”, comenta a terapeuta ocupacional.

Viviane — que também ingressou na graduação da UFPR por cotas em 2011, atuou como assistente em administração na instituição, concluiu mestrado e doutorado e hoje é docente — destaca a importância da Lei 14.723, de 2023, que atualiza e fortalece a Lei de Cotas ao torná-la uma política permanente, com revisão a cada dez anos.
Para a professora, a universidade precisa intensificar a aproximação com jovens das escolas estaduais e fortalecer ações voltadas à permanência. “É essencial garantir que o cotista encontre uma estrutura favorável à experiência universitária, que lhe permita concluir o curso e até vislumbrar a pós-graduação e a vida acadêmica como possibilidades”
Na UFPR, os 20 anos de cotas raciais permitem olhar para trás e reconhecer uma transformação estrutural e projetar o futuro. Segundo Cervi, a presença de cotistas enriqueceu o ambiente acadêmico. “A formação superior não se resume ao conteúdo em sala de aula, mas também à convivência. E quanto mais socialmente diversa, mais produtiva e formativa essa convivência se torna”.
Sua pesquisa indica que, atualmente, a proporção de pessoas negras nos cursos de pós-graduação da UFPR, independentemente de cotas, é o dobro da proporção de negros graduados pela instituição. O dado demonstra que cotistas sociais e raciais têm condições de disputar vagas na pós-graduação em igualdade, graças à formação recebida na graduação. “O que falta, inclusive na pós-graduação, é uma política de permanência. O desafio para o futuro é concentrar esforços no que importa: a permanência”, conclui.
A imagem de destaque é material de divulgação “Pela Porta da Frente: O Processo de Aprovação das Políticas Afirmativas na UFPR”, produzido pela antropóloga e técnica administrativa da UFPR Judit Gomes da Silva e pelo Projeto Comunicar Direitos. Assista o documentário aqui.
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