Num mundo cada vez mais conectado, em que há várias ferramentas que facilitam a localização espacial, ainda existem comunidades que não aparecem em nenhum mapa. Um coletivo ligado ao Departamento de Geografia da UFPR está contribuindo para dar visibilidade a alguns desses grupos. Trabalhando em estreita ligação com as comunidades, o Enconttra – Coletivo de Estudos sobre Conflitos pelo Território e pela Terra trabalha os mapas como instrumento para assegurar territórios, proteger o patrimônio socioeconômico e cultural e reivindicar melhorias na qualidade de vida.
O projeto teve origem num grupo de estudos criado em 2007, e foi oficializado em 2011. Já está em sua terceira fase, e ainda tem muita demanda de comunidades tradicionais de diferentes regiões do Paraná. As atividades incluem projetos de extensão e pesquisas de iniciação científica, mestrado e doutorado, com um grupo de pesquisa reconhecido pelo CNPq.
Um grupo de estudantes, coordenados pelo professor Jorge Ramon Montenegro Gomez, do Departamento de Geografia, reúne-se semanalmente para discutir e produzir, junto com as comunidades, mapas que servem de apoio em conflitos territoriais. Mais do que isso, o Enconttra trabalha com mapeamento social – uma forma de dar voz e visibilidade a populações e grupos tradicionais, como ribeirinhos, quilombolas, indígenas, faxinalenses, artesãos, extratores, pescadores, caiçaras, seringueiros, castanheiros, benzedeiras, carvoeiros, e tantos outros. Esses grupos populacionais, por sua vez, encontram na cartografia uma maneira de expor seus processos de territorialização e sua identidade.
O professor Jorge Montenegro explica que um grupo não pode ser compreendido sem o seu território, no sentido de que a identidade sociocultural das pessoas está, invariavelmente, ligada aos atributos do local onde vivem. Daí a importância da demarcação e caracterização espacial de territórios, especialmente daqueles em disputa, de grande interesse socioambiental, econômico e cultural, ou com vínculos ancestrais e simbólicos.
Para os integrantes do Enconttra, o protagonismo das comunidades no processo da cartografia social é um fator de extrema relevância, pois elas é que são detentoras do conhecimento acerca da região e da comunidade a ser mapeada. Levar em conta a identidade coletiva do grupo social, seus conflitos e práticas resulta num retrato mais fiel da comunidade, trazendo o olhar de quem realmente compreende aquela realidade.
”A cartografia social revela a pluralidade do sujeito, os conflitos que estão apagados, e também permite uma outra relação entre a universidade e a sociedade. Essas comunidades são produtoras de conhecimento, e ao construir seus mapas, elas lutam para não serem varridas, fazem com que o Estado e outros grupos conheçam onde estão e como vivem, se situando para contradizer aqueles outros mapas que simplesmente as invisibilizam”, diz Montenegro.
Projetos
Adriane de Andrade, mestranda em Geografia pela UFPR, é bolsista de iniciação científica e trabalha atualmente no Enconttra com mapeamento sociocultural das benzedeiras da região Centro Sul, em municípios como Rebouças, São João do Triunfo, e também na cidade de Irati. O trabalho revela ofícios tradicionais de saúde popular, repassados de geração em geração.
Outra mestranda de Geografia, Priscila Facina Monnerat, está envolvida com sistemas agroflorestais e agroecologia, trabalhando em assentamentos da reforma agrária. Segundo ela, é preciso combater o discurso de que os assentamentos sem terra trazem impacto ambiental negativo. “É um discurso falso, pois os assentamentos ajudam na preservação da terra, dos rios, do meio ambiente”, afirma.
“O projeto dá uma grande contribuição, ao produzir mapas que são usados até no campo jurídico, para a solução de conflitos e proteção dos direitos das comunidades. É uma forma de mudar a realidade”, diz Letícia Ayumi Duarte, doutoranda em Geografia.
Letícia cita como exemplo a experiência do Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais do Litoral do Paraná (Mopear). Eles entraram com uma ação civil pública contra o Parque Nacional de Superagui, alegando que essa área de preservação ambiental ignorou o direito das comunidades tradicionais de participar adequadamente da criação do Plano de Manejo do Parque (instrumento utilizado na gestão dessas áreas e que determina os possíveis usos do território). Segundo Letícia, os gestores do parque e pesquisadores que estavam elaborando os estudos para o Plano de Manejo criaram mapas que ignoravam ou silenciavam práticas tradicionais essenciais para a reprodução social do grupo e que são asseguradas por diversos dispositivos jurídicos, como a Convenção 169 da OIT.
Os pescadores artesanais e caiçaras fizeram seu processo de automapeamento com o apoio de pesquisadores ligados a grupos de pesquisa, ensino e extensão como o Enconttra, o Grupo Identidades Coletivas, Conflitos Territoriais e Educação Emancipatória no Sul do Brasil e o Núcleo em Defesa de Direitos de Povos e Comunidades Tradicionais.O defensor público do Estado do Paraná Wisley Santos, que atua em Paranaguá, está a frente do processo dos pescadores, bem como de outros grupos que vêm utilizando a cartografia social como instrumento de luta por direitos e transformação de suas realidades. Para ele, o trabalho do coletivo é de suma importância, ao fornecer elementos importantes para a atuação no campo jurídico.“Os povos e comunidades tradicionais são titulares do direito fundamental à assistência jurídica, de forma integral e gratuita. Ela pode e deve ser adotada de forma coletiva, sempre que houver necessidade de afirmação, reconhecimento, proteção e defesa de seus direitos étnicos e territoriais”, afirma.
Para Amantino Sebastião de Beija, morador do faxinal Meleiro, no município de Mandirituba, e integrante da Associação Articuladora dos Faxinalenses da Região Metropolitana, a parceria com o Encontrra em vários projetos tem ajudado na constante luta para que os faxinalenses sejam aceitos como grupos sociais não só pelas autoridades, mas pela sociedade em geral, e possam exercer os seus direitos.
Por Cida Bacaycoa