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Pesquisadora da UFPR traduz biografias e poesias medievais inéditas para o português

Marcella Lopes Guimarães explica que a poesia da Idade Média ajuda a entender um período que não vivemos e que papel teve na vida de trovadores

O momento global de maior restrição coincidiu com o período que Marcella Lopes Guimarães, professora no Departamento de História da Universidade Federal do Paraná (UFPR), tinha reservado para estudar um conjunto de obras que até então não tinham tradução para o português. Agora tem, graças ao trabalho e à pesquisa da historiadora, que traduziu poesias e biografias de trovadores da Idade Média e que lançou recentemente o livro “As vidas dos Trovadores Medievais: quem foram os homens e as mulheres que cantaram o amor”. O material estava em occitano, língua falada durante o período medieval no sul da França e que Marcella não dominava até se deparar com as obras.

Tudo começou quando a historiadora foi selecionada em um edital internacional para trabalhar como professora visitante na Universidade de Poitiers na França, em 2013. Na instituição, Marcella fez a descoberta dos documentos na língua medieval e se impressionou com notas biográficas sobre os trovadores (artistas de origem nobre, que escreviam e cantavam poesias com o uso de instrumentos musicais) que acompanhavam o cancioneiro, coleção de poesias reunidas em livro.

Fotocópia digitalizada de um cancioneiro original todo em manuscrito, no topo da página está a nota biográfica (em vermelho) e a poesia (em preto). Fonte: Site Gallica

“Como eu sou uma medievalista e estou longe dos originais [afastada geograficamente das fontes de pesquisa], a leitura no cancioneiro sempre me escapou um pouco. Quando me dei conta disso, me deparei com uma preocupação teórica que tinha com a historiografia, porque me preocupo bastante com a biografia como gênero historiográfico”, explica a pesquisadora. A partir desse momento, Marcella tirou cópia do material para ver se tinha tradução para o francês ou outras línguas. Apesar de não dominar o occitano, a professora percebeu que em alguns momentos conseguia compreender as poesias e que isso renderia um novo projeto.

O occitano é uma língua românica, que tem origem no latim e relação com o português, já que possuem uma origem em comum. Durante a Idade Média, período que compreende do século V ao século XV, a poesia circulou bastante em occitano pela Europa, se espalhou do sul para o norte da França e, também, para a Península Ibérica. “Agora se você me perguntar: por que o occitano virou a língua da poesia ou do nascimento da poesia? Eu não sei te responder. Isso é um enigma. O que nós sabemos é que a poesia trovadoresca floresceu no occitano, ou seja, é uma língua que acolhe a poesia”, explica Marcella.

Em 2018 a pesquisadora escreveu o projeto de tradução de poesias e biografias de trovadores e o submeteu ao CAPES-Print, em 2019, programa institucional de internacionalização da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Nível Superior (Capes), que foi aprovado. O programa ofereceu três meses de bolsa e passagem para a França. Portanto, foi necessário que Marcella adicionasse recursos próprios de uma modesta herança de seu pai para viabilizar a pesquisa.

“Eu agradeço à Capes, obviamente, mas queria que você soubesse que eu também coloquei meu próprio dinheiro. Esse livro é financiado por mim e a edição impressa, que virá na sequência, também é financiada por mim. O Programa de Pós-graduação em História aprovou o orçamento para tradução de metade do meu livro, ou seja, dos ensaios que escrevi sobre a documentação para o inglês”, relata a pesquisadora.

Do projeto que reúne a tradução de 101 biografias com as poesias, nasce o livro de Marcella, que também produziu ensaios sobre esse material. Ela conta que o objetivo principal era traduzir o conjunto completo desses documentos pela primeira vez em português, pois não existe uma outra tradução. No entanto, como cumpriu o objetivo no meio do ano, a professora escreveu três longos ensaios sobre essa documentação e essas duas partes compõem a publicação.

Por que estudar trovadores, poesia e biografias?

A poesia da Idade Média ajuda a entender um período que não vivemos, ensina até onde ela foi e que papel teve na vida de trovadores. Naquele tempo, havia mulheres poetas e homens de origem modesta que conseguiram uma vida melhor com a poesia. O texto literário também permitiu que homens paquerassem mulheres acima deles na hierarquia social e que fossem amados por elas. “A poesia bagunçou a rigidez da sociedade feudal. Deu aos grandes senhores uma oportunidade de falar o que queriam sem fazer guerra. A poesia foi um veículo que deu aos homens e mulheres uma oportunidade de falar certas coisas que a sociedade interditava”, explica Marcella.

Capa do livro da professora Marcella. Foto: Reprodução/ Marcella Lopes Guimarães

Já quanto às biografias, a pesquisadora percebeu que nem todas retratavam fielmente os trovadores, porque a fonte para os biógrafos medievais eram as próprias poesias dos trovadores, então possuíam um caráter ficcional. “Mesmo as biografias mentirosas deram os contornos de uma pessoa muito concreta. Quem escreveu selecionou dados da vida para preencher e formar uma pessoa escrita e isso me fascina. Quando estudamos biografia, vemos um pouco como as sociedades representaram pessoas e indivíduos. E isso é bacana, porque somos homens e mulheres no tempo, somos coleções de gente dentro de nós mesmos”.

Áureo Lustosa Guérios foi um leitor especial do livro de Marcella antes de sua publicação e ajudou com apontamentos que foram acatados pela pesquisadora. Mestre e doutor em Literatura, ele conheceu Marcella durante a sua graduação em Letras na UFPR, quando cursou a disciplina de História Medieval com a professora. Desde então, mantiveram uma relação de parceria e ele não economiza elogios quando se refere à colega. Segundo Áureo, Marcella é uma das intelectuais mais completas que conhece e por quem tem profundo respeito e admiração. Ele ainda enfatiza que ser seu aluno foi um divisor de águas na vida como pesquisador.

Além da satisfação em ter acesso antecipado ao material, Áureo conta que admira a pesquisa da Marcella em coletar os documentos na França que não estavam disponíveis em apenas um local. “Ainda oferecer isso em uma tradução bilíngue com comentários históricos, se perguntando quem eram essas pessoas e como funcionavam essas composições. Não só analisando as temáticas, mas até as discussões das formas que não estão disponíveis em português. A obra dela traz um frescor a esse campo e vai ser uma contribuição muito interessante e relevante”, comenta.

A obra de Marcella também destaca padrões presentes no trovadorismo. Como por exemplo da mulher amada, da relação idealizada de adultério e da relação platônica não carnal, que são fundamentais para estrutura básica da Divina Comédia de Dante Alighieri, texto básico da tradição literária que vai influenciar todo o mundo. Áureo acredita que a contribuição do livro é grande, por traduzir uma língua que é pouco traduzida e fazer isso com comentários. “Para conhecer o impacto que o trovadorismo vai ter na literatura do Renascimento e, posteriormente, em uma grande parte da história da literatura. O enfoque sobre a biografia e a estrutura narrativa delas nos permitem analisar um fenômeno plurilinguístico transnacional, que envolve um certo nomadismo dos trovadores”, finaliza Áureo.

Uma trajetória incomum

Marcella teve um caminho acadêmico que não começou na História, mas em outro curso das Ciências Humanas que ajudaria em sua pesquisa como historiadora: as Letras. “Eu acho que a minha formação interdisciplinar é minha grande aliada. Na graduação em Letras na UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro], eu fiz disciplinas que foram muito importantes. Estudei latim, história da língua, filologia românica [estudo da linguagem em fontes históricas escritas], linguística, poesia galego-portuguesa. Sou mestre em Literatura e doutora em História. São meus aliados, junto aos meus gostos e a minha curiosidade”.

Como já explicado, Marcella não dominava o occitano, mas seu conhecimento e trabalho com outras línguas românicas ajudou no processo de aprendizado e tradução. A pesquisadora está habituada a trabalhar com fontes em português arcaico, galego-português, castelhano arcaico, francês e francês arcaico. Todas essas línguas têm elementos em comum e, em alguns casos, palavras que são idênticas. Um exemplo é a palavra “amor” que é igual em português e occitano. No entanto, diferente do nosso idioma, na língua medieval a palavra é um substantivo feminino.

Não existem cursos para aprender occitano e Marcella precisou fazer a tradução por si própria. Apesar do seu trabalho, ela não se considera uma tradutora. “Eu prefiro dizer que eu sou uma historiadora com formação em Letras e que também traduz. Tenho os meus métodos, construo glossários, faço um trabalho de morfologia [estudo da formação das palavras] reunindo pronomes, preposições, verbos e desinências verbais, porque essa estrutura eu conheço da minha formação” relata.

Mãe e pesquisadora

Marcella e sua filha durante o período de quarentena na França. Foto: Arquivo pessoal/Marcella Lopes Guimarães

Uma narrativa que não escapa à Marcella é a maternidade. A pesquisadora foi para França em 31 de dezembro de 2019 e retornou apenas no segundo semestre de 2020, passando os piores meses da pandemia com sua filha na Europa. Elas imaginavam que viveriam uma aventura de mãe e filha, conhecendo juntas um país, uma cultura e um sistema de educação diferentes. Porém, a pandemia estragou os planos. A professora conta que ficou doente em 2020, com sinusite. Quem cuidou dela foi sua filha de 12 anos. “Foi um período bastante difícil. Esse livro contém o resultado da pesquisa que eu consegui fazer e tem uma narrativa secreta em torno dele: de uma pesquisadora, uma mulher e uma mãe lutando em um outro país para poder não adoecer em hipótese alguma”, relembra.

Acabou que a estadia no país virou uma experiência de sobrevivência, de mãe e filha darem suporte a outra. “Se você me perguntar assim: e se estivesse sozinha? Eu acho que eu não tinha ficado saudável. Ela me manteve em atenção de quem eu sou e naquilo que eu tinha de fazer. A minha maternidade está no Lattes [currículo acadêmico]: eu sou mãe de uma criança nascida em 2008. Então existe um impacto na minha pesquisa. Hoje eu sou bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq, e acho que longe de me atrapalhar, minha filha me ajuda. Se não tivesse ela, eu seria menos produtiva, pode escrever”, conclui.

O livro “As vidas dos Trovadores Medievais: quem foram esses homens e mulheres que cantaram o amor” foi lançado pela editora Máquina de Escrever e está disponível no formato ebook na loja da Amazon.

Marcella também possui um episódio destinado a ela na série perfil do podcast Fala, Cientista!, da Agência Escola UFPR – clique aqui para escutar.

Por Bruno Caron
Edição por Maria Fernanda Mileski
Parceria Superintendência de Comunicação e Marketing (Sucom) e Agência Escola de Comunicação Pública da UFPR

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